A psicanálise cura?
- Melissa Gomes

- 21 de mai.
- 3 min de leitura
por Melissa Gomes, @psi.melissagomes

Sabemos que a cura em psicanálise não se trata da eliminação dos sintomas e tampouco da extinção da dor e do sofrimento. Afasta-se, portanto, da cura proposta por certas áreas da medicina, que acreditam na medicalização e no condicionamento comportamental como vias para uma estabilidade emocional. Se não estamos falando da resolução plena dos problemas da alma, do que falamos, afinal? Qual seria o trabalho de cura proposto na psicanálise?
Ela envolve a autonomia da pessoa, não é passiva e nem obtida externamente. Vem de dentro.
Como mineira que sou, gosto da analogia que diz que a cura analítica está muito mais para a cura do queijo, que vai ficando melhor quando colocado para sentir os efeitos do tempo. No período de maturação, vai se tornando mais interessante e adquire intensidade e complexidade.
Assim como ocorre com a iguaria feita na Serra da Canastra, uma análise exige paciência e depende de você se abrir para o desconhecido em cada sessão. Ao longo do processo é possível sim observar melhoras e transformações na qualidade de vida, embora o foco esteja no compromisso com o desconforto, em enfrentar o que tem falhado na vida. Como nos disse Lacan, “se existe um objeto do teu desejo, ele não é outro se não tu mesmo”.
A cura foi muito discutida por Freud e pelos pós-freudianos, e por vezes surgiram paralelos com o entendimento dela na medicina e em diferentes áreas da cultura. Num artigo publicado em 1996 na revista Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo, Renato Mezan trouxe alguns desses paralelos, esclarecendo que a palavra cura veio do latim para o português, e em grego é dita como “therapía”:
Cura veio tal e qual para a nossa língua, em que, além do sentido médico de restabelecer a saúde, tem significados muito próximos aos da palavra latina: curar o queijo, curar a madeira, significa levar tais substâncias ao seu grau máximo de excelência; curador de uma exposição é quem escolhe as obras e as dispõe do modo mais apropriado para obter o efeito desejado; o curador de menores exerce a curatela, isto é, a proteção dos frágeis; existe o termo cureta, que designa um instrumento para raspar (curetagem) aquilo que deve ser eliminado do organismo etc. São sempre palavras que implicam uma ação para melhorar e proteger, portanto indicando a direção em que se deseja obter uma transformação.
Interessante pensar como a palavra passou, desde sua origem, do significado ligado a um processo transformador a outro que tem a ver com imediatismo e pragmatismo. Curar-se da depressão, curar-se de uma alergia, curar-se após sofrer sequelas em um acidente. Chegam a pensar que estão comprando esse tipo de cura, ao tomar medicamentos ou ao iniciar uma terapia. Querem se curar inclusive de uma vida sem sentido.
Essa ideia ganhou mais força do que nunca na era dos remédios psiquiátricos, quando mal utilizados. Com o ritmo acelerado na rotina das pessoas e na oferta de conteúdo no mundo digital - que refletem um sistema ao qual todos estão submetidos em algum grau - queremos a cura “pra ontem” e a entendemos como a resolução de um problema por completo, o objetivo dos tratamentos, o único final bem sucedido.
Donald Winnicott, psicanalista inglês do século XX, nos trouxe a interpretação da teoria de Freud a partir da noção de um ambiente suficientemente bom para possibilitar o desenvolvimento psíquico saudável. Nesse ambiente, inicialmente oferecido ao bebê pelos pais ou primeiros cuidadores, é necessário suportar a passagem do tempo e a descoberta de todas as emoções primitivas do sujeito, até que ele seja capaz de se integrar e enfrentar com mais autonomia o que vier pela frente. Possibilitar a cura do queijo não seria análogo a isso? Oferecer um bom ambiente para que ele se desenvolva e suporte a passagem do tempo sem apodrecer?
Uma linha tênue separa a proliferação de bactérias e fungos nocivos e o desenvolvimento de microrganismos que melhorem a textura e o sabor do queijo. É a qualidade do ambiente oferecido que vai separar o apodrecer-se do tornar-se melhor, assim como no tratamento analítico. Basta que algum detalhe desande para que o resultado final fuja completamente do esperado. Daí a importância de não prometer a cura, e sim oferecer condições para que ela ocorra de dentro para fora.
Em outras palavras, conscientes de que o que se busca numa análise não é a cura como um produto, e de que é preciso tratar as causas dos problemas e não somente os sintomas, temos mais chances de obter benefícios duradouros para a saúde mental. Aprende-se a viver melhor com o sofrimento psíquico, a alma ganha consistência para enfrentar o que vier e, paradoxalmente, a vida também pode ficar mais alegre quando acolhemos as angústias em vez de tentar apagá-las.
São possibilidades de um tratamento feito com responsabilidade e dedicação. A aposta nele precisa ser feita por cada um que pro(cura) a análise.




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