Para onde estão indo os nossos sonhos?
- Melissa Gomes

- 21 de mai.
- 5 min de leitura
Por Melissa Gomes, @melissagomes.psi
Há cinco anos criei um caderno de sonhos em que anoto o que vier à mente no minuto em que abro os olhos após uma noite de sono. Eles não aparecem todo dia. Muitas páginas ficam em branco, mas quando consigo capturá-los, chegando à vigília ainda meio confusa, pego o bloco de notas e escrevo em associação livre. Com frequência releio alguns dos relatos mais antigos e o estranhamento é quase certo: fui eu mesma que escrevi isso? Há detalhes, nuances, frases meio doidas, cenas constrangedoras e tudo o que o inconsciente pode nos dizer sobre nós da maneira mais disfarçada possível. E para quê anotar tudo isso? É que, em análise, tinha (e ainda tenho) fome de saber algo que eu escondia de mim e poder ter a experiência de construir novas possibilidades depois de me apropriar dos meus desejos, mesmo sem ter a menor noção de como fazer isso. Com essa ideia de decifrar enigmas me aprofundei bastante em questões sombrias, e, para encurtar a história, eu que era jornalista, acabei por me tornar analista.

Foram anos para elaborar como seria a transição de um trabalho para outro, e enquanto seguia com a análise pessoal e os estudos teóricos em psicanálise, mais uma pergunta me guiava. Para onde estão indo meus sonhos? A sensação foi de que eu tinha acordado um gigante e já não era possível adormecê-lo de novo. Como quem é levado pela correnteza forte de um rio sem ter onde se agarrar. Os desejos ganharam contornos e as relações familiares, profissionais e entre amigos começaram a ser ressignificadas. Desde então venho pensando sobre a função dos sonhos e o quanto ela está sendo pouco ou quase nada aproveitada por nós enquanto sujeitos, mas também enquanto sociedade. Vejamos algumas inquietações com as quais me deparei a partir desse assunto.
O sonho foi descrito inicialmente por Freud como o guardião do sono. Nesse sentido, ele teria a função de garantir o descanso de quem dorme, sem que a pessoa acorde ao menor estímulo que receba de fora, e portanto estaria muito ligado ao ato de dormir. Mais de cem anos depois do livro A interpretação dos sonhos (1900), que inaugurou a psicanálise, muito foi pensado sobre o funcionamento onírico, e hoje parece haver mais estímulo para sonhar acordado do que dormindo.
Uma das ideias freudianas que perdura sobre esse assunto é a de que os sonhos são como estrelas. Mesmo não os vendo o tempo todo, sabemos que estão lá. A partir dessa analogia podemos pensar que mesmo não lembrando do sonho ao acordar, sabemos que sonhamos; e que nem só dormindo se sonha, e é para esse segundo pensamento que voltamos os olhares neste texto. Lembremos que o mesmo significante sonho é usado para representar metas, planos e até mesmo fantasias que temos acordados. Quem nunca se pegou olhando para o nada, numa dimensão distante, em que uma história completa se passa na cabeça ao mesmo tempo que escapa da consciência? Isso também parece estar no campo do sonhar.
Extrapolando um pouco mais, existem sonhos já prontos esperando para serem apropriados por nós. O sonho da casa própria e do carro do ano, o sonho do diploma, o sonho da aparência perfeita. Seriam esses exemplos do sonho transformado em produto? O psicanalista Daniel Kazahaya nos propõe a pensar que “trocar um sonho por um produto-sonho, é um péssimo ‘negócio’, pois empobrece radicalmente o processo do sonhar. Isto tem efeitos diretos sobre a vida da pessoa, pois se ela não “trabalha” o psiquismo ele permanece fraco, flácido, vulnerável, como normalmente acontece com os músculos humanos”, disse Kazahaya no primeiro capítulo do livro Psicanálise e processos formativos (2021).
Fato é que a vida acelerada que é imposta a nós em meio a jornadas múltiplas e ao fim do tédio com o uso das redes sociais nos deixa menos tempo para dormir, e consequentemente menos tempo para sonhar profundamente. Quem traz outro alerta a respeito disso são os povos indígenas. O professor e ambientalista Kaká Werá nos lembra em uma de suas conferências que o sonho é um recurso de cura porque nos permite entrar em contato com sentimentos e, assim, ideias que são descoladas do seu lugar inicial na mente e passam a ser vistas de outro ângulo, como entidades que podem então ser combatidas.
Segundo a tradição tupi-guarani, vivemos no “mundo de baixo”, por meio dos cinco sentidos, que seria apenas uma parte da vida, apenas um terço dela. A vida não seria uma realidade única e também haveria o mundo do meio, que se mostra quando o corpo físico repousa, ao fechamos a porta dos sentidos e irmos para o estado onírico, que por essa perspectiva seria mais real que o mundo material. Os indígenas creem que o mundo do meio é uma dimensão mais importante de se conhecer do que o mundo de baixo, já que ao sonhar produziríamos grande parte da realidade que vivemos no mundo de baixo.
Independente da crença, sabemos que ao sonhar vislumbramos futuros possíveis, soluções criativas e ainda não pensadas, seja no estado de sono ou na vigília, desde que olhemos com atenção e sensibilidade para as manifestações do inconsciente. Esse ponto em comum nos basta para concluir que é urgente valorizar nossos sonhos. Ao ouvir de nossos povos originários que no passado a mandioca, o milho, o guaraná e o amendoim foram descobertos pela conversa entre o reino do mundo de baixo e o reino do mundo de cima, a partir de sonhos com o espírito das plantas, mesmo que para outras crenças espirituais isso possa ser entendido como lenda ou mito de origem, é inegável que há saberes ancestrais repassados por esse conteúdo dos sonhos, mas que andam se perdendo em muitas esferas da sociedade.
Diante de um contexto de violência nas escolas e de catástrofes ambientais que desalojam cidades inteiras no Brasil, nos vemos sem saber por onde começar a reconstruir o que foi destruído. E embora boa parte das perdas nessas situações sejam irreparáveis, precisamos abrir espaço para o sonhar. Esse lugar de criatividade, elaboração e descarga de diversos sentimentos e, portanto, lugar do desejo, é a aposta para seguirmos esperançosos apesar dos horrores provocados pelas pessoas. Insistir nos sonhos é não permitir que até eles nos sejam roubados. Não à toa Nietzsche nos disse que “nada é tão nosso quanto nossos sonhos”.
Por coincidência, ou não, essa também é a via proposta pela psicanálise, já que uma analista empresta seus recursos de sonhar para que o paciente processe seu sofrimento, e assim o ajuda a dar sentido a aspectos do pesadelo que são insuportáveis (Ogden, 2005). São alguns apontamentos para lembrar que a vida é sonho e que, apesar de termos mais espaço para o mundo onírico quando dormimos, no estado da vigília devemos ser verdadeiros guardiões da nossa capacidade de elaborar novos sonhos, em vez de sucumbir àqueles que pegamos emprestados ou nos foram impostos.




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