Procusto-mãe, Procusto-filha e Procusto-analista
- Melissa Gomes

- 8 de mai.
- 9 min de leitura
Atualizado: 21 de mai.

O mito grego de Procusto provoca reflexões diversas sobre a postura normalizadora do sujeito, além de apontar para questões socioculturais enquanto produtoras de sujeitos submetidos a padrões arbitrários. Assim como o personagem mitológico, que definia a medida da cama de ferro ao qual todos deveriam se adequar, temos tantos outros exemplos - quiséramos que também fossem mitos- em que um objetivo financeiro inalcançável se torna o referencial ao qual trabalhadores se dedicam toda uma vida; em que um ideal de beleza faz de mulheres reféns de procedimentos estéticos; em que guerras civis se iniciam com base num objetivo violento compartilhado para justificar um (im)possível lado certo da história; e por aí vai.
Importante ressaltar que essa narrativa mitológica torna-se ainda mais frutífera para seguir pensando sobre desdobramentos na nossa vida prática quando citada e de certa forma ressuscitada por tantos autores da psicanálise contemporânea, que traçam paralelos com a clínica e com as relações sociais. A fim de recortar esse horizonte de possibilidades, tomei como base três artigos contidos no programa do curso que fazem referência ao mito de Procusto, e desenvolvi alguns dos insights que surgiram durante as leituras.
O primeiro deles, de Contardo Calligaris, “Uma outra maneira de dar o peito” (Folha de S. Paulo, 2001), remeteu-me à imagem de uma Procusto-mãe: aquela que impõe aos filhos o que acredita ser a chave para ser feliz, ou, nas palavras de Contardo, a mãe que evidencia a “banalidade da maneira moderna de amar os rebentos”, de forma que eles superem os pais seduzindo e fazendo mais sucesso do que eles.
O segundo, que é o registro de um seminário proferido por Alfredo Jerusalinsky em 2002, trouxe à luz a ideia de Procusto-filha: aquela que segue à risca a tarefa mortal de não desejar e fica presa no gozo dos pais. O caso clínico traz a história de uma jovem com anorexia que também cresceu com uma mãe que ditava suas vontades aos filhos e um pai que se anulava, o que acaba evidenciando como famílias podem produzir sujeitos que precisam pedir socorro pela passagem ao ato (única e radical saída que se vê, à moda Procusto) para poderem fazer algo diferente do que se espera deles.
E o terceiro texto, de Octave Mannoni (do livro O divã de Procusto), acabou me oferecendo ao final da leitura um modelo de Procusto-analista: aquele que encara o divã como o leito de ferro em que os pacientes deitam e nele se submetem a interpretações forçadas. Esse analista refém da norma possivelmente também deitou em cama arbitrária e entendeu a norma à sua maneira, aplicando-a como se dirigisse a consciência do analisante. Tira conclusões precipitadas e até encara a psicanálise como um tipo de teoria superior às outras. É o analista tirano.
Com essas três associações busquei organizar brevemente algumas das provocações evocadas pelo mito grego, ou, em outras palavras, demonstrar como enxergo Procusto analogamente nas figuras da mãe, da filha e do analista. Sem desconsiderar a singularidade que cada caso merece na psicanálise, aqui temos um exercício despretensioso, que, espero, não se transforme em mera análise selvagem de textos alheios.
Os artigos de Calligaris, Jerusalinsky e Mannoni têm em comum o fato de fazerem referência ao mito de Procusto e de retratarem fragmentos de casos em que sujeitos aplicam testes ou apostam numa espécie de reeducação do outro, como nos sinalizou Mannoni. Aqui me lembrei de José Saramago, que também contribui com uma inferência crucial, a de que existe uma tentativa de colonização do outro quando impomos algum tipo de regra ou partimos para a tentativa de convencimento. Parece-me ser esse o cerne dos pontos trazidos pelos autores que se referem ao mito.
A respeito da figura da Procusto-mãe, essa investida na colonização do filho costuma ter origem no retorno à fase narcísica. Gestar um filho, para muitas mulheres, é entrar novamente em contato com a ideia de poder ter o falo, assim como Freud já nos sinalizava no século XX.
“Coisa que clinicamente é fácil de reconhecer: quando uma mulher decide ser mãe produz-se na sua vida uma espécie de suspensão de todas as outras variantes do desejo, até mesmo o erótico em certa medida. Consagra-se geralmente esta mulher a uma posição mais histérica do que propriamente feminina que consiste em restituir pela via de ter um filho, seu narcisismo fálico”(JERUSALINSKY p.30)
Assim, podemos pensar que a mãe ao se tornar mãe sente que finalmente pode dar um presente ao grande Outro e a ela própria, mostrando-se capaz de realizar-se por essa “extensão de corpo dela”. Como se o filho pudesse ser uma prótese que vai preencher o espaço faltante e compensar o que ela não pôde ser ou ter anteriormente. Essa ideia inconsciente abre caminho para uma vida em função de agradar quem está em volta e esperar realizar-se por outros. E aí também começa a armadilha que pode desembocar, dentre tantos outros destinos, na mãe cheia de cirurgias plásticas que incentiva a filha a ir pelo mesmo caminho.
“É inevitável: se a tarefa da vida for agradar aos outros que nos importam, nenhum olhar será definitivo, nenhum elogio e nenhum amor bastarão para decretar que o seio é perfeito. Pois o julgamento dos outros é uma suposição nunca resolvida. Podemos contar as pétalas da margarida (me ama, não me ama, me ama...) ou modificar o corpo (mais silicone, menos silicone..).” (CALLIGARIS, Folha de S. Paulo, 2001)
Procusto-mãe e Procusto-filha se chocam nesse sentido, já que a adolescente desse caso relatado por Calligaris se frustra por não poder agradar aos pais e ser desejada por eles (e pelos outros que estarão no lugar deles) como gostaria, partindo do princípio que se agrada por meio da imagem estética. Mais do que isso, a adolescente que coloca próteses de silicone nos seios aos 16 anos precisa realizar uma travessia para se posicionar como um sujeito desejante, onde a função paterna precisa operar, caso contrário há o risco de ficar presa no desejo da mãe. Afinal, “é porque o pai vem barrar o desejo da mãe que o sujeito tem possibilidade de desejar.” (ALBERTI, 2009, p.231).
Os efeitos catastróficos que podem ser gerados pela ausência da função paterna ficam ainda mais explícitos no outro caso apresentado no texto de Jerusalinsky. No manejo da análise de uma adolescente que sofria de anorexia, a mãe teve que sair de cena para que a filha passasse a ver valor no pai e para que pudesse desejar outras coisas. No trecho de uma das sessões a paciente ouve do analista sobre a sua responsabilidade pela desordem da qual se queixa. “(…)E se você continuar a se deixar enganar pela sua mãe, não há vômito que tire sua mãe de sua barriga. Você poderá vomitar até o infinito, mas não conseguirá retirar sua mãe de seu interior se continuar a se deixar enganar por esse pedaço de comida como se ele fosse a sua mãe.” (JERUSALINSKY, 2002, p.34). Vemos, por esse exemplo, que quando o sujeito está arraigado a uma visão muito restrita da realidade, em que só existe uma opção, é como se o tirano houvesse colocado um cabresto que lhe permite ver muito pouco a sua volta, sem espaço para questionar o que vê. A posição em que a adolescente desse caso se encontra, portanto, não é nem de objeto de desejo da mãe, mas de objeto de gozo da mesma.
A direção do tratamento feita pelo analista foi no sentido de “bater com um martelo significante na cabeça da mãe” fazendo-a se afastar da filha para que então a jovem tivesse uma chance de parar de se torturar e de torturar aos pais com a sua condição de saúde. “Quando se trata de casos clínicos onde a emergência do real é tão violenta, ou seja, que o mandato para extinguir, apagar o desejo pela via materna é tão violento, a intervenção em ato (não comportamentalista, mas com valor simbólico) é imprescindível.” (JERUSALINSKY, 2002, p. 43). A condução dessa história nos exemplifica tanto Procusto-mãe quanto Procusto-filha e como a prisão a essas normas podem ser tão violentas quanto aprisionantes e precisam de alguém que intervenha para romper com o gozo instaurado.
Podemos seguir nessa linha de pensamento e discutir também o papel do analista como um dos agentes possíveis para intervenções como essa do caso acima, desde que ele esteja comprometido com a ética de sua função e não se aproxime do Procusto-analista. Vejamos. O texto de Mannoni trata especificamente da figura do analista e de como ele entra na cena analítica. É resgatada a imagem daquele que se posiciona calado e ouve o paciente sem demonstrar qualquer tipo de emoção, com o suposto objetivo de que ele próprio realize a tarefa de interpretar o que diz. Esse seria o analista mudo, que segue o que Sancho disse a Don Quixote em Dom Casmurro: “Escutai bem o que vós dizeis”. Inicialmente esse princípio levaria ao trabalho de análise por parte do analisante, o que seria oposto ao forcing, postura do analista que quer acelerar o trabalho de interpretação e acaba agindo de forma arbitrária com o paciente. Sem dar espaço para construções autônomas.
De fato o analista que se apressa não deixa dúvidas de que age de maneira equivocada, mas há ainda o perigo do analista mudo, que por vezes passa como alguém blasé, porém seguro daquilo que faz, e pode estar na pele do Procusto-analista, rígido e frio, sem dar brecha para o que a cena analítica tem a oferecer àqueles que trabalham como dupla no setting. Mannoni evidencia, portanto, que tanto o analista que força interpretações quanto aquele que se cala totalmente devem ser evitados, por se tratarem de extremos aqui chamados procustianos. As intervenções, então, não deveriam ser planejadas de acordo com um script. Pelo contrário, viriam da surpresa que o discurso do analisante guarda e pode revelar a qualquer momento.
Momentos em que a análise desempenha um papel de engodo, de chamariz (de decoy duck, ou de Trügbild), podem ocorrer em toda análise e, certamente, se passam numa análise muitas outras coisas além das trocas de palavras. Entretanto, a interpretação deve aí funcionar, quer venha do analista, ou que o analisando deva encontrá-la sozinho. (MANNONI, 1991, p.13)
Jacques Lacan se dedicou a essa questão em A direção do tratamento e os princípios de seu poder, quando elabora que o analista paga a sessão com a ação da interpretação, com seu próprio corpo e saindo de cena, se abstendo do lugar de sujeito e sustentando o lugar de objeto. Assim, seria possível dirigir o tratamento e não a consciência do paciente (LACAN, 2009). Deixar o paciente dizer sobre ele, algo simples para evitar o lugar do Procusto-analista, mas ao mesmo tempo tão difícil de se sustentar numa análise. A tentação de entregar uma interpretação pronta ronda o trabalho dos analistas, principalmente os iniciantes, mas há que se pensar que quem está na função de analista evita de um lado deitar no leito de ferro da teoria psicanalítica, e de outro colocar o paciente para deitar nesse mesmo leito.
No entanto, nem por isso o jogo de uma análise fica sem tática. Ainda segundo Lacan, as estratégias permanecem sendo o convite para a associação livre, a ideia do analista estar no setting como objeto e não como sujeito, e ainda deixar que a transferência opere por ela mesma, para citar algumas. Dito isso, percebemos que o lugar de Procusto pode assombrar um analista, assim como assombra mães, filhos e tantos outros papéis que assumimos. Trata-se de figuras caricatas que podem nos assaltar num caminho escuro, assim como o bandido Procusto abordava viajantes à noite, seduzia-os e em seguida os deixava presos para sofrer.
Conclusão
Os paralelos entre Procusto e tantos agentes sociais foram apenas pincelados neste trabalho. Coube aqui um ponto de partida para extrapolar o mito; brincar com ele para assimilar algumas leituras acerca da mãe controladora e invasiva, da filha submetida ao gozo da mãe e do analista tirano. Quanto de cada um desses existe em nós?
Essa pode ser uma pergunta a nos fazermos de tempos em tempos, em diferentes fases e papéis desempenhados ao longo da vida. Guiar-se na direção contrária de Procusto pode ser um norte, ainda que nunca estejamos imunes a ele.
Particularmente aos analistas, cabe frisar que as diversas intervenções verbais são importantes para produzir efeitos de análise e que a interpretação é algo que apenas compõe essas intervenções, as quais deverão trazer insights a posteriori (dificilmente os efeitos estarão prontos ainda na sessão, como se pudéssemos entregar resultados express).
Confrontações, devolver o que o analisante falou, deixar reverberar e depois, possivelmente, colher algum efeito, fazem parte de um pacote de normas que conferem rigor à psicanálise, e não rigidez procustiana. Outro lembrete a ser registrado a partir das leituras deste trabalho é o de buscar as diacronias do discurso do paciente para possibilitar alguma tradução do que está sendo dito. Buscar o elemento faltante, não para preencher a assimetria do discurso, mas para que o analisante possa desejar algo e seguir desejando. Por fim, que não tentemos colonizar o outro com as regras introjetadas por nós.
Bibliografia
ALBERTI, Sonia. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2009.
CALLIGARIS, Contardo. Uma outra maneira de dar o peito. Folha de S. Paulo, 2001.
JERUSALINSKY, Alfredo. Seminário III “Etiologia, evolução e cura de um caso de anorexia grave numa adolescente” – proferido em 15/04/2002
LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Os escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
MANNONI, M. O divã de Procusto. In: MCDOUGALL, J. (coord). O divã de Procusto. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.




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