Um olhar analítico freudiano sobre o filme Crimes de família
- Melissa Gomes

- 10 de abr.
- 16 min de leitura
Atualizado: 21 de mai.

Este trabalho propõe a articulação de conceitos da psicanálise com o filme argentino Crimes de família (2020), do diretor Sebastian Schindel. O exercício aqui registrado foi o de lançar um olhar psicanalítico nos personagens e na narrativa de uma trama baseada em fatos reais. Um casal da alta sociedade de Buenos Aires tem que lidar com a prisão do filho único, que é suspeito de cometer violência sexual e diversos outros abusos em relação a esposa, com quem teve uma criança. Atrelada a essa família está a empregada doméstica que trabalha para os pais desse homem. Ela veio do interior ainda muito jovem para morar com os patrões e ficar disponível para os serviços 24 horas/sete dias da semana, sem poder estudar ou ter vida social. Nessa situação a mulher engravidou duas vezes, sem qualquer estrutura psíquica para entender o que se passava. A primeira gravidez gerou um filho que foi acolhido pelos donos da casa e é criado como um membro da família, e a segunda terminou de uma forma brutal, o que dá início a uma série de descobertas sobre os conflitos familiares, sociais e psíquicos envolvidos na história.
PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O FILME
O sujeito não quer saber do que o traz angústia. Essa ideia colocada por Freud ainda na primeira tópica é o fio condutor da história da família Arrieta, que parece conviver em paz do alto de seus privilégios, mas está envolta por uma bolha de negações e valores conservadores prestes a estourar. Tanto é que o filme começa com a imagem de um corredor que dá para uma porta entreaberta, remetendo a um convite para entrar na história e ao mesmo tempo desvendar o que se esconde atrás da porta.
Esse corredor leva a um banheiro, sujo de sangue, que vai aparecer repetidas vezes ao longo do filme, mas só ganha sentido quando se revela o que ocorreu no cômodo, localizado na área de serviço do lar dos Arrieta. Tal como uma cena onírica de terror sem muito significado assim que se sonha, é preciso ligar os pontos da história da família para entender que o fato ocorrido no dito banheiro condensa muitas representações.
Desenrolar esse carretel dos fatos é também o que se propõe numa análise, e nesse aspecto a narrativa de “Crimes de família” sugere o processo de trazer à tona experiências enterradas no inconsciente e os sintomas e defesas produzidos a partir delas. Aqui me refiro não só ao inconsciente dos personagens retratados na história, mas também ao inconsciente de cada espectador como cidadão do mundo eurocentrista, que se identifica em menor ou maior medida com as práticas socioculturais degradantes evidenciadas pela trama. Seja por ter sido vítima ou algoz dos atos dos personagens e do sistema em que eles estão inseridos. O que vemos no filme, portanto, são comportamentos que ferem direitos humanos e trabalhistas, limites negligenciados na dinâmica familiar e educação dos filhos e abusos de poder por parte daqueles que deveriam defender “a lei e a honra” da sociedade civil, para citar alguns pontos. A seguir, vejamos como esses fios se costuram na trama.
FAMÍLIA ARRIETA: ALÍCIA, IGNÁCIO E DANIEL
Para Alícia Arrieta, a mãe da família, a fantasia de um casamento duradouro e estável é bastante confortável. Inicialmente seu cotidiano é marcado por receber amigas do bairro em casa e fazer yoga na própria sala, onde também batem papo e tomam café da tarde. Ao ser questionada sobre a ausência do marido aposentado, Ignácio, diz que prefere que ele continue indo à empresa trabalhar para que ela tenha tempo para si durante o dia. Sobre outros temas delicados ela responde que prefere não se meter. Pelo comportamento no convívio social não parece haver tensão ou grandes problemas na vida da protagonista.
Ainda na abertura do filme, fotos na estante demonstram a passagem do tempo conforme a visão dela, com todos felizes e unidos em viagens e datas comemorativas. São momentos congelados como produto do recalque do aparelho psíquico dessa mãe, que emoldura só o que é bom. Símbolos religiosos estão junto dessas imagens da família, o que já indica a influência do catolicismo na vida dos personagens, especialmente Alícia e Gladys, de quem vamos falar mais a frente. Análogos à psique da mãe Arrieta, também são as imagens espelhadas da personagem, que aparecem várias vezes em objetos metálicos, enquanto ela conversa com alguém ou se arruma para sair, evidenciando pontos cegos e invertidos na perspectiva de Alícia, sempre com uma amplitude reduzida dos problemas da trama. É importante listar alguns: lidar com a prisão do filho por suspeita de violência doméstica; conviver com um marido distante, que pode até estar sob o mesmo teto, mas parece ter se separado afetivamente da esposa e do filho; criar também o filho da empregada doméstica e educá-lo no contexto de uma família burguesa; e ainda, sentir a pressão das fofocas sobre a família que circulam pela alta sociedade portenha.
Ignácio é outro que se defende das prováveis dores e decepções da vida, mas em vez de negá-las ou simplesmente recalcá-las, as rejeita e começa a se ausentar gradualmente do contexto familiar assim que sente o cheiro do furacão que está por vir. Age numa posição perversa, evidente na omissão diante das acusações de abusos que pairam sobre Daniel. Ao visitá-lo na prisão, por exemplo, questiona o que ele fez, tira suas conclusões e sinaliza para a esposa que está ciente de que o filho não é inocente. No entanto, participa cada vez menos das decisões que o casal precisa tomar. Alícia sugere comprar o juíz para sumir com provas do processo, e o marido responde para ela fazer o que achar melhor, mas sem contar com ele. Em seguida decide sair de casa e recomeçar a vida longe da esposa e de Daniel.
Este, que parece estar na casa dos 30, liga para a mãe quando está em apuros e pede socorro. Morava com a esposa Marcela antes dela denunciá-lo por diversas agressões a ela e ao filho Martin. Daniel não tem emprego fixo, teve pequenos negócios que faliram, e gasta o pouco dinheiro que ganha com drogas, deixando a mulher na mão com a criança pequena. Quando é colocado contra a parede por Marcela e pela justiça argentina, volta todos os esforços para conseguir a atenção e a salvação de Alícia, que literalmente compra o juiz do caso, e simbolicamente compra o discurso de vítima de Daniel. Ele alega durante o julgamento que a dependência química o impede de ajudar em casa e que são falsas as acusações contra ele. Dissimula dizendo que caiu em armadilhas feitas por Marcela para sacaneá-lo, como quem é perseguido e enganado. Culpabiliza a mulher por se defender das agressões, dizendo que ela o violentava, e até mesmo por ter começado a usar drogas, alegando que ela o achava um inútil e o chingava o tempo todo, por isso ele teria iniciado o consumo. Além disso, o fato dele não aceitar ser interrogado pelos advogados da ex-mulher, enquanto ela responde todas as perguntas da defesa dele, evidenciam que ele tem noção dos crimes que cometeu e quer se esquivar disso, passar por cima do que for necessário para se dar bem, o que caracterizaria posição perversa.
Por observar todo o processo de longe, cabe também a interpretação do pai Ignácio como coadjuvante na história desde a fase edípica do filho, embora esse passado não apareça no filme. Apesar de não dar credibilidade aos argumentos vitimistas de Daniel, tampouco ele impõe limites aos abusos, e portanto não representa o papel de pai como garantidor da lei. Pelo contrário, ao saber por meio de conhecidos que havia amostras de sêmem que comprovavam a violência sexual cometida por Daniel com a ex-esposa, o pai sugere à mãe que Daniel deveria admitir tudo que fez e dizer que estava sob o efeito de drogas, endossando a dependência química como doença que o teria impedido de discernir o que era certo ou errado. Não à toa, Ignácio não diz isso diretamente ao filho e sim para Alícia.
Alícia, por sua vez, num arranjo histérico de defesa, interdita essa interdição que o pai deveria fazer aos crimes de Daniel, porque não dá espaço para ninguém agir como ela age. Não quer limites nessa relação. Lidera as iniciativas sobre a família e concentra nela o vínculo com o filho, seja preparando as comidas favoritas dele, acreditando nas desculpas ou soltando-o da prisão antes da conclusão do julgamento. Quando o visita pela primeira vez na prisão, ele ganha um abraço caloroso, de quem diz: “Daniel, meu amor. Nossa, como você está grande”, o que passa a ideia de um filho ainda bebê em desenvolvimento, que precisa de compreensão e cuidados incondicionais.
GLADYS E SANTIAGO, MÃE E FILHO NA TRAMA DA VIDA REAL
Sobre essas duas figuras do filme, cabe ressaltar que são mãe e filho também na vida real. A atriz Yanina Ávila, que interpreta Gladys, vem de uma comunidade argentina chamada 25 de maio. É funcionária pública municipal e iniciou como atriz no filme Crimes de Família. Coloca um pouco de sua essência na interpretação do papel. É o que diz em entrevista à imprensa argentina, além de contar nunca ter estudado atuação e ter sido descoberta por produtores de elenco na vida pacata que leva na comunidade. O filho da personagem, Santiago, de apenas três anos, é Santiago também fora das telas.
O pequeno “Santi” entra na história antes de Gladys. Sai da cozinha do apartamento dos Arrieta e vai em direção à sala, onde ocorre a reunião das amigas de Alícia após a aula de yoga. O pequeno chama a matriarca de tia e entra chamando por ela para entregar um desenho. Gladys vem em seguida, buscando o filho e se desculpando por ele ter entrado. As convidadas questionam Alícia sobre a ausência do neto Martin, filho de Daniel, que tem a mesma idade de Santiago e não está presente, mas ela desconversa. A cena dá a primeira pista de que Alícia exerce o papel de vó com Santiago, mas não com o neto biológico, que está afastado junto à mãe enquanto o pai é investigado pelos abusos. O carinho e a atenção dedicados a “Santi” parecem suprir a função de avó da protagonista.
Voltemos à personagem Gladys. Ela é uma das forças responsáveis por fazer desmoronar a barreira (romper com o recalque) que ocultava os problemas da família Arrieta. É por ela que Alícia acaba obrigada a admitir que o filho Daniel cometeu diversos crimes. No entanto, Gladys é bastante submissa e não revela tão facilmente os fatos. Veio ainda adolescente do interior onde morava, fugindo dos abusos do pai, que a fazia trabalhar desde muito nova e a deixava sozinha em casa, portanto (como sugere a fala dela), morar na casa de uma família como empregada teria sido uma salvação da situação em que nasceu. Ela é grata à Alícia por cuidar do filho e dar lar aos dois, mas acaba por reter todo e qualquer tipo de afeto, o que indica um arranjo de histeria de retenção.
A defesa psíquica de Gladys parece ser resultado dessa infância traumática, que a impede de sentir ou perceber o que se passa com o corpo (e com a vida) dela. Freud sintetiza em uma pergunta, nas conferências introdutórias à psicanálise, o aspecto da fixação no trauma que seria comum aos neuróticos: “como, de que maneira e por força de quais motivos uma pessoa assume uma postura tão singular e tão desvantajosa diante da vida?” (FREUD, 1916). Esse seria um traço geral de toda neurose, sobre o qual Freud ainda comenta:
Por intermédio da análise, podemos inferir que cada um de nossos doentes se transportou de volta a certo período de seu passado nos sintomas de sua enfermidade e pelas consequências deles. Na maioria dos casos, escolheu para isso uma fase remota da vida, um período da infância e até mesmo, embora talvez pareça ridículo, sua existência quando criança de peito. (Freud, 1916)
Quando o ocorrido no banheiro da casa começa a ser investigado, Gladys vai dar depoimento e não sabe dizer muito sobre si. Não sabe o sobrenome da mãe e nem o número do documento de identidade, tampouco se lembra do sobrenome do pai. Não se recorda de nada da cena que ocorreu atrás da porta do banheiro sujo de sangue, embora ela tenha sido encontrada no local, por Ignácio.
O que se mostra mais ao final do filme é que Gladys passou por uma segunda gravidez depois de Santiago, não desenvolveu a barriga, nem mesmo se deu conta que estava gestando uma vida, e esse bebê foi encontrado morto no banheiro da área de serviço do apartamento. O parto ocorreu ali mesmo. Ela sozinha pariu o bebê na madrugada, e Ignácio encontra Gladys limpando a sujeira do cômodo. A polícia e uma ambulância são chamadas e o corpo do recém-nascido é levado morto. Gladys é levada ao hospital e acorda no local, algemada.
A empregada não demonstra nenhum tipo de sofrimento pelo fato. Não relata nada sobre o possível homicídio do filho (infanticídio) nem mesmo para o defensor público que a atende, porque não pode dar detalhes do que não sabe. Já na prisão, enquanto aguarda o julgamento, o olhar dela foge quando conversa com os outros, vai para longe e depois para baixo e para o lado. À profissional que vai até ela na prisão dar apoio psicológico, reitera que não se lembra nada da noite do crime, apesar de ser a principal suspeita no caso da morte do bebê.
Depois de um tempo reclusa e com apoio de sessões com a psicóloga na cadeia, Gladys relembra parte do ocorrido e enfim fala o que houve - não com a intenção de revelar tudo, mas para pedir o perdão resignado que acha que deve à patroa. Na visita que recebe na prisão, de Alícia e do filho Santiago (que fica sob os cuidados da “tia”), ocorre o seguinte diálogo:
Gladys: “Senhora, Santi tem que ser seu, por todo mal que fiz a você. Eu não sabia o que fazer. Ele me disse que se eu contasse ia matar eu e o Santi também. Depois como não veio mais em casa, já foi.”
Alícia: “De quem você está falando Gladys?”
Gladys: “Daquela vez que faltou dinheiro na casa, seu filho me pediu para entrar, e eu deixei. Foi quando ele me agarrou. Por isso Santi tem que ser seu. Eu devo isso à senhora. O bebê era de seu filho, dona”.
A patroa ouve a empregada com os olhos estalados, de quem finalmente cai em si. Os relatos de violência da nora Marcela começam a fazer sentido e a culpa é sentida por Alícia, como um sintoma de verdades vindas à tona, da dimensão do inconsciente para o pré-consciente, que pula abruptamente para o consciente. Tanto é que assim que volta da visita Alícia resgata as provas de estupro de Marcela, ocultadas da justiça, e as entrega para a nora retomar o processo.
Voltando à gravidez causada pelo estupro de Gladys, há uma cena em que ela sente dores na barriga e reza, fazendo uma espécie de simpatia com uma faca, para aliviar o incômodo. Alícia observa isso e diz à empregada que é para tomar remédio quando se sentir mal. Vai ao banheiro e lá pega um comprimido para dar a ela. A essa altura a funcionária já estava gestando um feto, mas não associava os sintomas à gravidez, o que nos leva para algumas interpretações de um dos possíveis destinos da personagem no declínio do complexo de édipo.
A inibição ou frigidez pode ser uma defesa que se coloca como registro simbólico da castração na infância. Gladys pode ter produzido essas características no contexto de escassez e coerção em que cresceu, num movimento de recalque da ideia e do afeto eróticos, que vão direto para o inconsciente sem que o afeto seja convertido para o corpo. Sob esse ponto de vista Gladys não produziria reações no corpo e nem mesmo dores psíquicas evidentes pelo que passou quando criança, e assim continua a ser também depois de adulta, como alguém que vive constantemente anestesiada. Segundo Freud, “Uma lei geral afirma que a regressão retrocede até a fixação e de lá se impõe ao retorno do reprimido” (FREUD, 1915).
Por outro lado, a cena em que Gladys benze a própria barriga pode indicar que as dores corporais que sente na gravidez também estejam ligadas a dores psíquicas, após os atos violentos do filho da patroa. Nesse caso ela sofreria em silêncio, convertendo a dor da mente para o corpo e ainda negando a gravidez, já que ela não levanta a hipótese de estar gerando um filho. Sob esse ponto de vista Gladys teria sim registros dessa dor psíquica, embora tivesse recalcado o motivo do sofrimento. É o que sugere a psicóloga da história quando defende no tribunal que Gladys teria cometido infanticídio em razão do estado de choque em que ficou no momento do parto do bebê.
Vale ressaltar que Gladys também não se deu conta da primeira gravidez, do filho Santiago. No entanto, nesse primeiro caso, brevemente citado numa cena de depoimento no tribunal, a patroa que a levou ao médico suspeitando que poderia haver sintomas, e ainda estava em tempo de acompanhar a gestação e fazer o parto de maneira assistida. A repetição da completa ignorância em relação a si está na história para reforçar o quão regredida Gladys está.
A PSICÓLOGA COMO QUEM REMONTA A HISTÓRIA
A personagem aparece no filme como prestadora de serviços sociais a mulheres vítimas de violência, especialista em infanticídio. Quando começa a investigação do caso de Gladys ela é acionada para ouvi-la. Como a empregada não se lembra dos fatos recentes, a psicóloga a pergunta sobre a infância, onde cresceu, como chegou a trabalhar na casa dos Arrieta, e vai reconstruindo a história da empregada doméstica.
No julgamento de Gladys, a psicóloga depõe como parte da defesa da acusada, explicando do que se trata o infanticídio e fazendo a avaliação do perfil da mãe e o que a teria levado a cometer o ato extremo. O promotor do caso interpela a profissional, com perguntas que desmerecem a argumentação da especialista no assunto. Mesmo esclarecendo que ela não tinha consciência do que se passava, ele insiste em sugerir que havia outras formas de agir diante da gravidez indesejada, como entregar o bebê para adoção.
Nesse sentido, cabe destacar a predominância de homens no ambiente do judiciário diante de um tipo de crime ligado à causa feminina. Um sofrimento próprio do gênero acaba por ser banalizado no tribunal, ainda que a psicóloga tente convencer a promotoria de fatores comuns a todos, com falas como “a negação é um mecanismo que todos utilizamos”. Nesse ponto também fica evidente a insuficiência do sistema jurídico perante a subjetividade das pessoas, que não está plenamente inscrita na linguagem e tampouco resumida nos limites da lei.
MARCELA E MARTIN, OUTRAS DUAS VÍTIMAS DE DANIEL
Marcela, a ex-mulher de Daniel, mãe de Martin, aparece em poucas cenas da história, mas também representa um ponto de virada na trama ao balançar as estruturas da família Arrieta, quando denuncia incansavelmente o ex-marido pelos abusos até que alguma providência seja tomada pela justiça. Ela é um contraponto à negação e ao recalque das outras personagens.
Ao se levantar contra Daniel, Marcela fica sozinha com o filho e precisa sustentá-lo sem ajuda, já que é dada como mentirosa e aproveitadora pela família Arrieta. As marcas do sofrimento psíquico também aparecem no discurso dela no tribunal, quando conta que sofreu de depressão ao ter que suportar os crimes e ainda dar conta da casa e da criança.
Já o pequeno Martin, de três anos, representa uma segunda geração de crianças que não tiveram quem fizesse o papel de interdição na fase edípica, assim como ocorreu com o próprio Daniel. Podemos inferir ainda que a criança observou a violência doméstica de perto, sendo vítima não só da negligência paterna, mas também de um ambiente tóxico para o seu desenvolvimento.
A repetição de pais omissos é paralela à repetição de mães que negam o sofrimento. Marcela foge à regra ao se levantar contra o ex-marido, mas também está no retrato da mulher que sofre com a violência e o abandono ao embarcar na ideia de um amor romântico.
PARA ONDE ESSA HISTÓRIA NOS LEVA?
Crimes de família é uma história sobre abusos, que estão por todos os lados. Não só por parte de Daniel, que violenta mulheres, mas também por parte da mãe Alícia que abusa da lei, e do casal que submete uma funcionária a condições de trabalho análogas à escravidão, sem qualquer limite de horário e respeito à individualidade dela.
Quadros histéricos, perversos e psicóticos compõem os personagens do filme de forma a mostrar os arranjos psíquicos possíveis diante das experiências vividas por cada um e reforçadas, ora por privilégios de alguns deles, ora por violação de direitos de outros. Enquanto Daniel consegue aguardar seu julgamento em liberdade, por causa dos contatos da mãe com advogados renomados e juízes (além de ter o dinheiro para dar a propina cobrada), Gladys é algemada ainda na maca do hospital e não tem voz e nem liberdade alguma até que o julgamento ocorra.
Santiago, filho de Gladys, é muito melhor tratado do que a mãe-empregada e estuda em escola bilíngue com crianças abastadas, enquanto o filho de Daniel, Martin, mora na periferia de Buenos Aires e estuda em escola pública. Esses contrastes expostos em Crimes de família remetem ainda à luta entre forças mentais contrárias que operam na psique histérica de Alícia. Justamente por isso ela nega tantos indícios de crimes cometidos pelo filho, afinal “a intenção da repressão é sempre evitar o desprazer”(FREUD, 1915), e por isso o eu do sujeito se divide. A parte que o move a saciar vontades e demandas com base na realidade, a partir do princípio de realidade, age de acordo com o mundo externo e se defende de ameaças por meio do recalque. Já na dimensão do inconsciente não existe censura e seu conteúdo vive a tentar vir à tona, mas o mecanismo do recalque e a resistência que temos em vencê-lo acabam sendo mais fortes.
Também fica evidente no filme o quanto as mulheres negam a realidade e os homens a recusam, com muito mais facilidade para fugir de suas responsabilidades. Gladys, Alícia e Marcela estão imersas em relações de cuidado dos filhos (e netos, no caso de Alícia) e se defendem de agressões do jeito que cada uma dá conta. Uma pela via da inibição, outra pela via da negação completa, outra pela via da denúncia formal da violência, mas não sem antes sofrer muito e chegar a extrema angústia. Daniel e Ignácio, assim como o personagem que oculta provas em troca de dinheiro, sabem do que se tratam os crimes investigados na trama, mas com suas posturas perversas se recusam ao comprometimento com a lei. Têm mais caminhos abertos para fugir e se safar dos problemas.
A interpretação de Crimes de família a partir da teoria freudiana estudada até a realização deste trabalho jogou luz sobre conceitos básicos como o recalque e a resistência, que seguem fortes mesmo quando são escancaradas as provas dos crimes; a condensação de sentidos produzidos pelas vivências, que representa toda uma trajetória de vida em momentos traumáticos como o infanticídio que se passa no banheiro dos fundos do apartamento; e ainda o deslocamento de afetos, como visto na relação de Alícia com Santiago. Ela vive com Santi o amor de avó e neto que iria para Martin.
Outros conceitos mais estruturais propostos por Freud, como as diferentes posições subjetivas da neurose, psicose e perversão e as psicopatologias que podem se desenvolver em cada um desses casos, aparecem como hipóteses diagnósticas dos personagens do filme, considerando apenas o breve enquadramento das histórias de vida de cada um.
Aqui também coube extrapolar a leitura dos discursos de cada personagem e das relações familiares e trabalhistas, para pensar em como a psicanálise, ao falar da subjetividade, está imbricada às influências socioculturais que agem na formação de cada indivíduo. A assimetria de poderes, a distinção de classes sociais, os valores religiosos e a própria desigualdade de gênero são pontos que não poderiam ficar de fora desse trabalho. Dessa forma fica claro como a teoria psicanalítica segue pertinente para analisar conflitos psíquicos e sociais, desde que não percamos de vista que os conceitos devem ser constantemente questionados de acordo com o contexto de cada época.
REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1901). Sobre os sonhos. Imago,1980.
FREUD, S. (1901). Psicopatologia da vida cotidiana. Capítulos I e II. ESB, vol VI. Imago, 1980.
FREUD, S. (1908,1909). Romances familiares. Imago, 1980.
FREUD, S. (1910). Sobre um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens. In: Contribuições à psicologia do amor I. Imago, 1980.
FREUD, S. (1911). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. Imago,1980.
FREUD, S. (1914). Obras completas vol. 12: Introdução ao narcisismo. Companhia das Letras, 2010.
FREUD, S. (1915). Neuroses de transferência. Imago, 1984 (manuscritos inéditos).
FREUD, S. (1916-1917). Obras Completas vol 13: Conferências introdutórias à psicanálise. Companhia das Letras, 2014.
FREUD, S. (1927). Obras Completas vol 17: O fetichismo. Companhia das Letras, 2015.




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